segunda-feira, 26 de abril de 2010

A Ida - Parte 3

Então, continuando...
Saí da farmácia, com as medicações que a moça da farmácia me passou e voltei para a rodoviária. Queria perguntar como eu ia saber qual era o ônibus que eu deveria pegar, porque não havia indicação nenhuma na passagem, só havia a cidade na qual eu deveria parar. Mas como Piedrafita del Cebreiro deveria ficar um pouco depois de onde Judas perdeu suas sandálias (sim, porque duvido que Judas usava botas, mas, enfim...), eu não acho que esse era o ponto final do ônibus. Mas, claro, eu estava na Espanha, e lá tem uma coisa super legal chamada siesta, o que queria dizer que de 14:30 as 16:30, só tinha eu e uma velhinha pedindo dinheiro na rodoviária, e MAIS NINGUÉM! Todos os guichés fechados e eu sobrei...

Fiquei lá fora igual idiota perguntando para todo ônibus que passava se era nele que eu deveria entrar, passaram uns quatro e não era nenhum deles. a ideia de esperar que o ônibus chegaria na hora era uma doce ilusão. Finalmente, 20 minutos depois do horário devido chegou meu ônibus. E lá fui eu para Piedrafita.

Antes de falar a cena que eu vi pelo ônibus e que jogou meu coração lá em baixo, eu tenho que explicar minha linha de raciocínio no planejamento do que eu ia levar de roupa. Na minha cabeça, a imagem que eu tinha da Espanha era mais ou menos a que os gringos tem do Brasil: Sol, calor, dias lindos, sem chuva, sem vento, sem frio, e muito menos neve. Então na minha bagagem tinham shorts, camisetas e até bikini. E como eu não tenho absolutamente nada que preste na cabeça, meu 'uniforme de caminhada' consistia em duas CALÇAS JEANS (eu sei, anta...), camisetas, um casaco mais grosso para emergências, uma sobre pele de camisa e uma de calça, uma capa de chuva caso acontecesse um desastre natural, um par de havaianas para usar a noite, e um tênis de CORRIDA da Nike. Sim, porque se o tênis foi feito pra correr, LÓGICO que ele aguentaria fazer Trekking (E o prêmio Darwin vai para...).

Enfim, eu estava preocupada com o calor. Qual foi minha surpresa então, enquanto o ônibus se aproximava de Piedrafita, que o Monte cebreiro INTEIRO estava coberto de NEVE!!! Foi aí que minha cabeça foi logo para um tema que se provaria recorrente durante a viagem: 'Onde é que eu fui amarrar minha égua MEU DEUS! A Érika tinha me chamado pra ir para Alemanha, eu podia estar tomando cervejas em copos maiores que minha cabeça agora, que que eu vim fazer AQUI????'

Ok, lembrei da capa de chuva, das sobre peles, do casaco, e o desespero passou momentaneamente. Desci em Piedrafita, uma cidade que era UMA RUA, cheguei eram 17:00. Tá, e aí, que que eu faço agora? Sentei no banquinho do ponto de ônibus, acendi um cigarro (que Graças a Deus era a metade do preço da França, Yuupi!!) e tentei me reagrupar. Primeira coisa, lugar pra dormir, depois de 24 horas dentro do Eurolixo eu queria uma cama.Então, claro, com meu espanhol fantástico, fui procurar um albergue de peregrinos. Parêntesis para os albergues. A Associação (ou algo do tipo) do Caminho de Santiago tem albergues públicos para quem é peregrino, você tem que ter a carteirinha falando que você é um peregrino, e nela deve estar escrito se você está fazendo o caminho a pé, de bicicleta ou de carro (lame!). O custo destes albergues é super simbólico, são 3 Euros por noite. Mas tem regras, você deve chegar até umas 19:00 ou 20:00, porque se o albergue estiver cheio, você sobrou e vai ter que andar até a próxima cidade que pode estar a 1km de distância, ou a DEZ km de distância. Outra coisa, os peregrinos a pé têm preferência sobre os que estão de bicicleta, e estes têm preferência sobre os que estão de carro. Nestes albergues normalmente não tem café da manhã, e nenhuma outra refeição. Você só pode ficar em um deles somente por um dia, passou disso, tchau, a não ser que você esteja doente, quase morrendo, ou quebrou algum membro, o que acontece mais do que você imaginaria. A última regra é que os albergues te EXPULSAM se você ainda estiver lá depois das 8h da manhã, ou seja, acordou tarde, vai caminhar de pijama. E quem me conhece sabe que eu sempre era a última a sair né... A moça da limpeza chegava no quarto: Que haces acá?? No, deve partir ahora, beijomelliga! E lá saia eu correndo e colocando o tênis na porta do albergue. Mas eu estou adiantando as coisas.

Bem resolvi perguntar sobre o albergue num bar ao lado do ponto de ônibus. Na hora que eu perguntei sobre albergue de peregrino só faltou o espanhol bigodudo rir da minha cara. -Albergue? No, acá no hay albergue, el prócimo albergue és en alto del cebreiro, cinco km de acá! -Você tá zoando do meu cabelo né moço, com assim 5km??
-Si, Piedrafita no és parte del camiño de peregrinos a pié, solamente para os que van de bicicleta (desculpem meu portunhol meia boca, mas tá entendível né?). -QUE???
Ou já eram 17:30, tinha começado a chover, eu tinha ficado 24 horas em um ônibus maldito, sem banho, e agora eu ia ter que andar 5 km num caminho super íngreme para poder dormir? Eu queria chorar! Aí o espanhol bigodudo virou e falou assim: -'Mas aqui, isso aqui é um bar e um hotel, eu tenho quartos, te interessa??' Minha cara de felicidade logicamente inflacionou o preço do quarto né, mas: -Quanto é ai moço? -30 Euros com banheiro no quarto.

Trinta euros por um quarto é até barato, mas eu estava planejando gastar TRÊS, e não trinta. aí eu pedi um capuccino e falei que ia pensar. (Pausa para falar sobre duas coisas que eu AMO na Espanha: 'o café francês é uma maravilha!' 'O capuccino italiano não existe igual' MENTIRA!!! Eu nem sou tão fã de café assim, mas os cafés con leche espanhóis me converteram, tinha dia que eu tomava cinco, sem brincadeira! Outra coisa é que em relação a fumantes, a França perde feio para a Espanha, e ´lá ainda não chegou essa babaquice de não poder fumar em lugar fechado GRAÇAS A DEUS!!!) Tomei meu capuccino, fumei meu cigarro, e fiquei pensando, desembolso trinta euros aqui, ou procuro outro lugar, ou arrisco subir os 5km.

E enquanto eu pensava isso, foi super engraçado a cena do café. Como Piedrafita não faz parte do circuito do caminho, poucas pessoas de fora ficam lá. Então eu meio que virei a atração do lugar, todo mundo me encarando e perguntando quem era eu, Hilário!
Bem aí eu pedi pro dono do lugar (que eu acho que o nome dele é Carlos), se eu podia deixar minha mochila lá e ir dar uma volta e depois eu confirmaria com ele o negócio do quarto, beleza? -Beleza!

Aí eu dei uma volta pela cidade e sentei em um banquinho. Aí veio um ser humano meio gordinho e esbaforido, com uma mochila maior que ele nas costas. Me pediu um isqueiro e começei a conversar com ele (eu sou naturalmente tímida, mas para situações como essas, a timidez some e manda beijo): -E aí você está fazendo o caminho? -Estou sim, mas eu desviei do caminho e resolvi pegar a rota dos ciclistas, e aqui estou..

O cara era alemão e o nome dele era Mischa se não me engano. Como eu já tinha decido mais ou menos que andar mais 5km aquele dia era fora de cogitação, por que não recrutar mais um para fazer companhia na cidade fantasma. Ele falou que ia pensar, e depois ia me achar. Beleza, continuei no banquinho, que era perto do ponto de ônibus.

Aí parou um ônibus, e desceu uma menina loira, com uma mochila maior que ela, e com a mesma cara de perdida que eu deveria estar quando desci do ônibus. Ela ficou zanzando para lá e para cá e sem rumo. Aí eu pensei, duas perdidas é melhor que uma. Coloquei a melhor cara de pau que possuo e cheguei perto dela e perguntai: - E aí, tá fazendo o caminho? - Poisé cheguei hoje, vou começar amanhã, só vou achar um albergue aqui.
-Super coincidência eu também vou começar aqui. Só que má notícia, aqui não tem albergue oficial, e não faz parte do trajeto oficial. -QUÊ? Como assim? (Para vocês verem que não sou só eu que dá uma idéia na telha e sai por aí na cara e na coragem com planejamento zero) -Poisé, o próximo albergue é daqui a 5km. Mas tem um hotel aqui, 30 euros a diária, quer dividir? (Detalhe, até então eu não sabia nem o nome da menina). -Ué, pode ser! -Fantástico, como você chama? -Sam.

Então, para complementar o rol das coincidências Sam (diminutivo de Samantha) era canadense, estudante da NYU, mas que também estava passando o semestre em Paris, e decidiu começar o Caminho por Piedrafita, e acho que ela tinha menos informaçâo que eu do ela estava fazndo. Decidido que iamos ficar no quarto fomos comprar comida numa venda do lado do hotel, eu comprei um atum meio tosco e uma baquete. Fomos conhecer o quarto que não tinha aquecimento e banho frio. Mas, fazer o que, né?

Tomamos banho, e tomamos a decisão mais sensata de quem vai andar 20 km no dia seguinte. Fomos tomar várias cervejas no bar do hotel e ver a semi-final do campeonato europeu de futebol. Se eu não me engano era o Barça e Manchester.
Claro que o alemão que eu conheci antes decidiu ficar no hotel, e super topou de assistir o jogo, só que ele queria que eeu assistisse o jogo no QUARTO DELE, pode? Depois de eu ter rido bastante da cara dele e falado que não, falei que ele seria bem vindo a assistir o jogo com a gente no bar, Ele não topou, e acho que o futebol não era a prioridade dele, se é que vocês me entendem.

Eu e Sam tomamos mais do que algumas cervejas, confraternizamos horrores com o dono do bar/hotel, ele sentou na mesa com a gente, contou várias histórias, ficava puto quando algum cliente interrompia o papo dele com a gente hahaha, conversei muito com a Sam. É engraçado, nessas situações extremas, sabe, quando você está sozinha em um lugar estranho e não conhece ninguém, amizades são formadas instantanemente e em uma noite parecia que a Sam era minha amiga de anos, o Carlos, o dono do bar ficou superpaternal com a gente, deu café da manhã de graça, deu várias dicas, abraçou a gente quando fomos embora. São essas coisas que valem uma viagem desse tipo. Para que excursão e guia turístico? É assim que vida vale a pena ser vivida, sem planos, sem segurança, sem trajeto, sem preconceitos, e literalmente perdida! (Momento filosófico: off)

Bem, depois do café (mais dois cafés con leche,um vício se iniciava) começamos a andar. O Carlos encheu nossos cantis. Eu coloquei a capa de chuva da Sam, ela colocou a minha (porque eles não avisam que essas coisas são impossíveis de serem colocadas sozinhas), e como ainda estava chovendo, lá fomos nós, saindo de Piedrafita. Plaquinha da saída:

SANTIAGO DE COMPOSTELA: 197 km.

Here we go!

Um comentário:

  1. Meus destaques:
    "...Albergue? No, acá no hay albergue, el prócimo albergue és en alto del cebreiro, cinco km de acá!"

    " Fomos tomar várias cervejas no bar do hotel e ver a semi-final do campeonato europeu de futebol. Se eu não me engano era o Barça e Manchester.
    Claro que o alemão que eu conheci antes decidiu ficar no hotel, e super topou de assistir o jogo, só que ele queria que eeu assistisse o jogo no QUARTO DELE, pode? Depois de eu ter rido bastante da cara dele e falado que não, falei que ele seria bem vindo a assistir o jogo com a gente no bar, Ele não topou, e acho que o futebol não era a prioridade dele..."


    kkkkkkkkkkkk além do cansaço ainda teve q tolerar um viajante oportunista, que batalha agonizante, prossiga Flavia rsrss

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